Como atravessar os conflitos familiares
com menos dor e mais consciência
Como atravessar os conflitos familiares
com menos dor e mais consciência
Entendendo que o Judiciário não cura mágoas, nem escolhas erradas
(Por Milene Mattos)
Muitas pessoas chegam ao escritório de advocacia carregando mágoas profundas, ressentimentos antigos e uma expectativa silenciosa de que o Judiciário possa dar uma resposta que vá além da lei, como se fosse possível apagar a dor, corrigir escolhas ou “colocar a vida de volta nos trilhos”.
Mas preciso ser honesta e realista: o Judiciário não resolve mágoas ou ressentimentos. O papel do juiz, em tese, é aplicar a lei, analisar provas e garantir direitos. Ele não pode apagar o passado, reescrever histórias ou transformar pessoas.
No Direito de Família, há uma verdade inevitável: quando de uma relação nasce uma criança, independentemente de como essa relação se deu, essa criança permanece como um vínculo eterno.
Não importa se a relação foi efêmera ou longeva, calma ou conflituosa. O fato é que existe um filho, e essa realidade precisa ser encarada com maturidade e responsabilidade.
O processo judicial não tem o poder de mudar o outro genitor, nem de apagar atitudes passadas. O que se pode fazer é buscar mecanismos jurídicos para equilibrar responsabilidades, proteger direitos e, sobretudo, garantir o bem-estar da criança.
Percebo que, ao contratar um profissional jurídico, a pessoa acredita que acontecerá um milagre: A situação se reverterá em poucos dias, a medida protetiva será revogada em 24h e a convivência com a criança será retomada de forma automática. NÃO! Eu seria leviana se prometesse isso!
O nosso Judiciário, que deveria ser um espaço de imparcialidade e proteção, muitas vezes revela falhas profundas. Juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais se mostram despreparados e, não raro, sem a sensibilidade necessária até mesmo diante da criança. O processo se arrasta de forma exaustiva, e embora o advogado se esforce para acelerar os trâmites, há limites: o tempo da Justiça não depende exclusivamente dele.
O advogado de família exerce um papel essencial: Orientar o cliente sobre seus direitos e deveres; construir estratégias jurídicas para proteger o que for possível no âmbito da lei; defender interesses legítimos dentro do processo.
Mas é preciso compreender que o advogado não é terapeuta e não pode assumir a responsabilidade por escolhas feitas no passado.
Muitos profissionais sentem o peso emocional de ouvir desabafos intermináveis, mágoas e arrependimentos que, embora façam parte da história, não têm como ser resolvidos dentro de um processo judicial.
Por isso, é importante que o cliente entenda que, além da atuação técnica, existe um limite: o advogado não tem como mudar o outro genitor, nem como garantir que o juiz enxergue a situação da mesma forma que ele.
Em muitos casos, a chave para lidar com conflitos familiares não está apenas nas páginas do processo, mas também em diálogo, maturidade e aceitação: aceitar que o outro não vai mudar; aceitar que a criança precisa de ambos os pais, mesmo com todas as dificuldades; aceitar que a Justiça tem limites e que a vida prática exigirá resiliência muito além daquilo que está escrito em uma sentença.
Essa aceitação não significa abrir mão de direitos. Pelo contrário: significa compreender que o processo é apenas parte do caminho. O restante depende de uma mudança interna, de um novo olhar sobre a realidade e da disposição para enfrentar os desafios com equilíbrio.
A advocacia de família exige técnica, estratégia e firmeza. Mas também exige clareza para dizer ao cliente o que ele muitas vezes não quer ouvir: a Justiça não pode curar mágoas, nem transformar pessoas.
O advogado caminha ao lado do cliente, defendendo seus direitos e orientando sobre o melhor caminho. Mas cabe a cada um assumir sua história, aceitar as consequências das escolhas passadas e buscar maturidade para conviver com a realidade que nasceu delas.
No fim das contas, essa é a única forma de atravessar os conflitos familiares com menos dor e mais consciência.
O uso distorcido do protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ
A invisibilização da Paternidade no Direito de Família
(Por Milene Mattos)
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), surgiu como um marco importante para orientar o Poder Judiciário na promoção de decisões comprometidas com a superação das desigualdades estruturais de gênero. Inspirado em experiências latino-americanas e fundamentado em compromissos internacionais — como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU[1] — o documento tem como propósito garantir a equidade e combater estereótipos historicamente reproduzidos nas decisões judiciais.
O aludido Protocolo é dividido em três partes bem definidas. A primeira apresenta os fundamentos conceituais, explicando termos como sexo, gênero, identidade de gênero e desigualdade de gênero, além de abordar temas como divisão sexual do trabalho, estereótipos e violência estrutural que afetam a atuação judicial.
A segunda parte oferece um guia prático para os magistrados, com etapas como a identificação de desigualdades e vulnerabilidades já na análise inicial do processo, a atenção às dinâmicas de poder no contato com as partes, a adoção de medidas protetivas adequadas, a instrução do processo com foco em acessibilidade, o cuidado na avaliação de provas para evitar estigmas e a interpretação da norma à luz da igualdade substancial, observando inclusive os tratados internacionais de direitos humanos.
Por fim, a terceira parte indica como aplicar a perspectiva de gênero nas diversas áreas do Judiciário, incluindo a Justiça Estadual (em temas como medidas protetivas, alienação parental e alimentos), a Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar e a área da Infância e Juventude.
Em síntese, o Protocolo busca promover uma cultura judicial comprometida com a equidade e a dignidade humana, orientando julgamentos mais atentos às desigualdades estruturais e evitando decisões que perpetuem opressões sociais.
Contudo, no campo do Direito de Família, a aplicação dessa diretriz tem se mostrado, com frequência, distorcida e seletiva. Em vez de corrigir desigualdades reais, o protocolo tem sido evocado de maneira quase intimidatória por advogados e partes, com o objetivo de induzir julgamentos com viés exclusivamente favorável à mulher — mesmo em contextos marcados por má-fé processual, alienação parental ou abusos cometidos pela genitora. O que deveria ser um instrumento de justiça e equilíbrio vem se tornando, na prática, um escudo para manipulações processuais.
Em uma dessas experiências, presenciei a atuação de uma advogada com postura abertamente ideologizada, que fazia uso do Protocolo não como norte técnico, mas como selo de poder absoluto, como se isso a autorizasse a dizer o que quisesse sem necessidade de provas ou compromisso com a verdade.
Em todas as suas petições — inclusive aquelas meramente intermediárias ou de impulso processual — ela estampava, em cores vibrantes e com destaque, a logomarca do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, como uma espécie de advertência velada ao Judiciário: qualquer decisão que não acolhesse automaticamente suas alegações estaria, implicitamente, violando o protocolo. Era um claro instrumento de intimidação — tanto da parte contrária quanto dos julgadores.
No caso concreto, um pai lutava para ampliar a convivência com a filha e compartilhar os cuidados diários, enquanto a genitora — amparada por rede de apoio de familiares, babás e amigos — buscava impedir qualquer avanço nesse sentido, travestindo sua resistência com o discurso de violência. E qual foi o fato apontado por ela como “ameaça” que justificasse a proteção judicial? Uma troca de mensagens, na qual o pai criticava o modo como ela organizava a rotina da filha, delegando tudo a terceiros em vez de permitir que ele próprio cuidasse da criança.
Sim, essa foi a “violência” que mobilizou o aparato estatal: polícia, Ministério Público e Judiciário agiram com máxima celeridade — não por uma agressão real, mas por um incômodo manifestado em mensagem. Enquanto isso, milhares de verdadeiras vítimas de violência permanecem invisíveis, sem qualquer rede de proteção efetiva. É esse tipo de distorção, amparada pelo uso indevido do Protocolo, que fragiliza a confiança no sistema de justiça e transforma pais em alvos, não por seus atos, mas por seu desejo legítimo de exercer a paternidade de forma plena.
Não são raros os casos em que mulheres instrumentalizam o sistema judicial para dificultar ou impedir o vínculo entre pai e filhos, utilizando o discurso de “proteção de gênero” como cortina para práticas abusivas de alienação e controle. E o Judiciário, por omissão, comodismo ou receio político, muitas vezes acolhe tais estratégias sem o devido rigor técnico e sem a devida análise crítica dos fatos.
Lamentavelmente, observa-se cada vez mais o envolvimento de profissionais do sistema de Justiça — juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais — em pautas ideológicas de cunho político, marcadamente orientadas por um viés feminista institucionalizado, que termina por desvalorizar a figura masculina e descredibilizar a paternidade.
Em muitos casos, as decisões são tomadas não com base nos fatos concretos, mas a partir de narrativas preconcebidas, onde o simples fato de o pai reivindicar seus direitos já é visto com suspeita. O resultado dessa distorção é perverso: homens de bem, pais comprometidos, são afastados injustamente da vida de seus filhos, e as verdadeiras vítimas desse modelo são as crianças — que, a cada decisão guiada por ideologia e não por provas, perdem a chance de crescer com um pai presente, atuante e amoroso.
Nos fóruns, não são raras as decisões que romantizam a figura materna e relegam o pai ao papel de mero “visitante quinzenal” e pagador de pensão, ainda que existam provas robustas de negligência, manipulação emocional ou comportamentos abusivos da mãe. Fala-se em guarda “compartilhada”, mas o que se estabelece de fato é uma guarda unilateral materna disfarçada — com a mãe decidindo tudo e o pai reduzido à irrelevância afetiva e à exclusão da rotina da criança.
Aqui reside uma das maiores contradições: o mesmo Judiciário que diz combater a sobrecarga materna — reconhecendo o acúmulo de responsabilidades que recaem desproporcionalmente sobre as mulheres — isso ainda é um fato, reforça essa sobrecarga ao afastar sistematicamente o pai da vida da criança. Mantém-se o homem como mero provedor financeiro, sem presença significativa, sem rotina, sem corresponsabilidade.
Ora, se o próprio sistema reconhece a sobrecarga materna, qual deveria ser a resposta efetiva a essa realidade? Se há um pai disposto a compartilhar as responsabilidades parentais — não apenas as financeiras, mas também os cuidados, a rotina e as decisões sobre o filho — por que transferir essas funções a terceiros (escolas, avós, babás) e relegar ao pai apenas o papel de provedor e visitante quinzenal?
É contraditório e injusto excluir aquele que busca participar ativamente da criação do filho e, ao mesmo tempo, queixar-se do peso excessivo sobre a mãe. A verdadeira solução para a sobrecarga materna não está em ampliar a rede de apoio externa, mas sim em reconhecer e garantir o espaço legítimo da paternidade ativa e corresponsável.
O discurso de equidade, presente no próprio protocolo do CNJ, não se materializa na prática. Ao contrário: o sistema reforça a centralidade materna e transfere o cuidado cotidiano à terceiros — quando o natural e constitucional seria compartilhar essas funções com o pai.
Se a proposta for concretizar, de fato, os ideais do protocolo, é preciso inserir o pai no espaço do cuidado, da decisão e da rotina — não apenas no papel de pagador ausente. A verdadeira coparentalidade exige presença, corresponsabilidade e participação ativa, não apenas boletos pagos e visitas agendadas.
O próprio protocolo do CNJ orienta magistradas e magistrados a julgarem com atenção às interseccionalidades, aos papéis historicamente atribuídos aos gêneros e às vulnerabilidades reais. Contudo, sua aplicação enviesada — especialmente no âmbito das Varas de Família — inverte a lógica da imparcialidade e reforça a narrativa maniqueísta: a mãe como naturalmente apta, o pai como figura descartável.
É preciso lembrar que a coparentalidade é um dever constitucional. O Estatuto da Criança e do Adolescente garante à criança o direito à convivência familiar com ambos os genitores. Decisões judiciais que ignoram esse princípio ferem frontalmente o melhor interesse da criança.
Defender os direitos dos pais, e das crianças de terem um pai presente, não é negar a vulnerabilidade feminina. É afirmar que justiça verdadeira só existe quando há equilíbrio, isenção e análise sem preconceitos estruturais — inclusive os que recaem sobre os homens.
Diante de tantas distorções, torna-se urgente uma reestruturação profunda do sistema judiciário, especialmente no âmbito das Varas de Família. Não é admissível que o Poder Judiciário, cuja essência constitucional é a imparcialidade, se deixe capturar por pautas políticas e ideológicas. Juízes, promotores, assistentes sociais e demais operadores do direito não podem atuar com base em suas vivências pessoais, frustrações ou convicções particulares.
É preciso lembrar que cada caso exige análise individualizada, técnica e isenta — livre de generalizações ou narrativas preconcebidas. Nem toda mulher é vítima, nem todo homem é agressor. Há mulheres que exercem violência com extrema frieza e crueldade emocional, assim como há homens afetivamente disponíveis, emocionalmente sensíveis e profundamente comprometidos com a criação de seus filhos.
O erro está em julgar a partir de estereótipos, e não dos fatos. O Judiciário precisa resgatar sua missão essencial: julgar com equilíbrio, baseando-se em provas, garantias processuais e no superior interesse da criança — não em discursos prontos e ideologias travestidas de equidade.
A aplicação do Protocolo do CNJ precisa ser urgentemente revista no âmbito das Varas de Família. Um instrumento concebido para promover igualdade não pode continuar sendo usado para legitimar exclusões afetivas, falsas acusações ou decisões parciais travestidas de proteção.
O olhar do Judiciário deve estar direcionado para o real interesse da criança — e não para o gênero da parte que o invoca. Nem sempre é a mãe quem melhor atende aos interesses da criança. E nunca será a exclusão injusta do pai ou o sobrepeso unilateral da maternidade a solução para conflitos parentais complexos.
[1] A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 estão intrinsecamente ligados na promoção da igualdade de gênero e no empoderamento feminino